quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Crónicas Urbanas - Sabor a uvas e figos

(moita61/flickr)

Foi um telefonema rápido, com a voz entrecortada pelo stress. Foi um telefonema rápido e inesperado que me gelou o sangue, como são sempre estes telefonemas. Ana tinha morrido, havia já uma semana. E ainda nessa manhã pensara nela, pensara em lhe telefonar para saber como estava, porque a sabia adoentada, nos seus mais de 80 anos completamente lúcidos e independentes. E realizei que falara com ela um par de dias antes dela morrer. Queixara-se de uma dor que a apoquentava e de se sentir um pouco em baixo. Mas também se interessara pelos bem-estar, amores e desamores deste 'seu menino'.
Falar de Ana é recordar uma mulher do Alentejo, beleza morena nos seus tempos de juventude, leal nas suas amizades, presença serena nas nossas vidas. A primeira recordação que tenho dela, remonta aos meus três ou quatro anos, vindo de um tempo ainda em que era criada pessoal da minha tia-avó: pegava-me ao colo, chamava-me 'menino Joãozinho' e dava-me uvas e figos. E a mim, intrigava-me o sinal que ela tinha ao canto do lábio superior. E os olhos de Ana eram grandes, escuros e doces...
Mas Ana, nessa altura, também era - e eu não o sabia ainda - uma mãe-coragem. Viera de uma aldeia da Serra do Mendro, Santana. Enviuvara muito cedo, nem sei se chegaria a ter 30 anos. Nos braços uma filha pequena, Candelária. Ana nunca voltou a casar nem a viver com homem algum. Veio da aldeia para a Vila. Para a casa da minha tia-avó e após a morte desta, em casa do meu primo e padrinho, Fernando Pulido. Mas não parou e quis dar uma melhor educação e vida à filha e em breve abalou para Lisboa, mais uma a juntar-se à já vasta mole de emigrantes alentejanos na Grande Cidade, vivendo no então bairro clandestino da Brandoa. Torna-se cozinheira, com as mãos e os rituais mágicos que só as alentejanas sabem ter na cozinha. Foi ajudada nesta sua nova aventura, porque quem a ajudou reconheceu nela a mãe-coragem, a mulhr serenamente destemida, a mulher de trabalho e confiança. A heroína discreta e simples como só as mulheres sabem ser.
Ao longo dos anos, e apesar da distância, manteve uma relação de grande amizade e dedicação conosco: com as minhas tias e depois da morte delas, comigo e alguns dos meus irmãos, aqueles de quem sabia a morada ou o telefone. Regularmente telefonava-me a saber como eu estava. Telefonemas que se intensificaram depois da morte da última das minhas tias. Preocupava-se comigo, com o sempre 'menino'. E cada telefonema ainda tinha o sabor das uvas e dos figos que me dava, quando me pegava ao colo...

2 comentários:

  1. Mulher de armas, esta Dona Ana e justa homenagem esta que aqui lhe fizeste...

    ResponderEliminar
  2. Esta D.Ana era a minha Avó...
    Foi muito bonito o que escreveu sobre ela...
    Eu amava-a e amo-a muito, tenho muitas saudades dela, mas aqui posso recordá-la e saber o que outros amigos e pessoas que lhe eram muito queridas pensavam e sentiam por ela, orgulho admiração e uma grande amizade.
    Obrigado por esta mensagem...

    ResponderEliminar